por Keila Málaque
Marta era cheia de vida. Tanta vida, que ela segue brotando vibrante na nossa memória.
Aqui uma lembrança do sorriso doce ou da exata sonoridade de sua fala; ali uma imagem da garrafa de café insistente sobre a mesa.
A garrafa de café (disponível para quem chegasse), podia estar sozinha ou acompanhada. Se acompanhada, podia ser de pão-de-casa, bolinho de polvilho, sonho de goiabada, bolinho de milho verde ou da memorável panqueca de milho verde.
E o sabor da pamonha.
Palha de milho espalhada pelo chão, gente suja do respingo do creme do milho, Marta salgando, adoçando, adicionando banha, determinando a largura da fatia de queijo, provando o creme e enchendo os ‘copinhos’ de palha.
Ou o viciante macarrão ao molho vermelho.
Seria assim o macarrão da roça? Como algo tão simples podia ser tão bom?
Os doces de figo foram testemunha dos seus esforços para complementar o orçamento – como também o brechó e o sabão de álcool. Junto com Silvio, virou empreendedora para ajudar nos gastos, fosse com remédios ou com as trezentas ou mais viagens para Jales e Barretos, que apertaram um pouco mais as finanças do casal.
Por vezes, conversávamos sobre nossos tratamentos – o dela paliativo e o meu curativo (o que me punha um pouco desconfortável). Marta sabia das limitações do seu tratamento. Ainda assim, não gastava tempo reclamando, exalando raiva ou negando a realidade. Tinha coisa mais interessante pra fazer.
O que não significa que não sofresse ou não se cansasse – com as viagens, as notícias de metástase, as convulsões, o tumor que ora reduzia, ora aumentava, a expectativa de conseguir na Justiça a químio importada, depois a expectativa de ter as plaquetas em dia pra poder receber a químio importada… Por anos, teve uma vida de expectativas e tensões, mas sabia falar de suas tensões sem jogá-las sobre o ouvinte como um lixo do qual precisasse se desfazer.
Marta se viu careca, com o cabelo ralo, com o corpo inchado e os dentes enfraquecidos. Não se escondeu do mundo por causa disso. Devia suspeitar que a ‘beleza tradicional’ não era minimamente comparável ao carisma que tinha – capaz de atrair tanta gente pra perto dela.
Apesar do cansaço e da gradativa decadência do corpo, a porta da casa continuou aberta e a garrafa de café continuou sobre a mesa. Os feriados continuaram a trazer amigos e as safras de milho continuaram lhe dando motivos pra fazer pamonha com os amigos.
Foi assim que Marta se relacionou com a expectativa da morte. Quase sou tentada a dizer que não lhe deu muita importância.
Porque, convenhamos: o que é a morte quando há tanto afeto? E, com tanto afeto, tanta vida!
Marta faleceu em Jales na noite de quinta-feira, 30 de janeiro de 2025, aos 69 anos.
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